quinta-feira

The Bench




"Conheci-a num banco de jardim, à beira do canal, de um dos canais, porque a nossa cidade tem dois, embora eu nunca os tenha conseguido distinguir. Era um banco bem situado, de costas para um monte de lixo e terra dura, de modo que a minha rectaguarda estava protegida. Os flancos também, em parte, graças a um par de árvores venerandas, mais do que venerandas, mortas, uma de cada lado. Foram sem dúvida estas árvores que, num belo dia em que toda a sua folhagem ondulava, fizeram germinar a ideia de um banco, na cabeça de alguém. Em frente, a alguns metros, corria o canal, se é que os canais correm, não faço ideia, de modo que também desse lado o risco de surpresa era pequeno. Mesmo assim, ela surpreendeu-me. Eu estava estendido no banco, havia uma brisa quente, e olhava através dos ramos despidos que se entrelaçavam bem lá no alto, onde as árvores se apoiavam uma na outra, e através das nuvens descontínuas, para um pedaço de céu estrelado que ia e vinha. Chegue-se p'ra lá, disse ela. A minha primeira reacção foi ir-me embora, mas o cansaço, e o facto de não saber para onde ir, não me deixaram pô-la em prática. Puxei os pés um bocado para trás e ela sentou-se. Não se passou mais nada entre nós nessa noite e ela foi-se embora pouco depois, sem me voltar a dirigir a palavra. Antes tinha-se limitado a cantar, baixinho como se fosse para ela, e felizmente sem letra, velhas canções populares, desencontradas, saltando de uma para a outra sem acabar nenhuma, de uma forma que até eu achei estranho. A voz, mesmo desafinada, não era desagradável. Eu pressentia uma alma que se aborrecesse depressa e nunca acaba nada, talvez a alma menos chata de todas. Até do próprio banco se fartou depressa e, quanto a mim, uma olhadela tinha-lhe chegado, quando na realidade era uma mulher extremamente tenaz. Voltou no dia seguinte e no outro e tudo se passou mais ou menos como antes. Talvez algumas palavras tenham sido trocadas. No dia seguinte estava a chover e senti-me em segurança. Puro engano. Perguntei-lhe se estava decidida a incomodar-me todas as noites. Incomodo-o? - perguntou ela. Estava de certeza a olhar para mim. Não pode ter visto grande coisa: duas pálpebras no máximo, com um pouco de nariz e de testa, obscuramente, por causa da obscuridade. Julguei que estávamos bem, disse ela. Incomoda-me, disse eu, não me posso esticar consigo aí. A gola do meu sobretudo tapava-me a boca mas mesmo assim ela ouviu-me. Tem mesmo de se esticar? - disse ela.
O mal é começar-se a falar com as pessoas."


Samuel Beckett
Primeiro amor

1970/2002
Ambar

(Imagem: Egon Schiele "Sitting woman with legs drawn up"; 1917)

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