quinta-feira

"O conto de fadas é a cartilha onde a criança aprende a ler o que se passa no seu espírito, na linguagem das imagens, a única linguagem que permite a compreensão antes de se conseguir a maturidade intelectual. A criança precisa de se expôr a esta linguagem e tem de aprender a ser receptiva a ela, se é que quer ser senhora da sua alma." (Bruno Bettelheim)




"Hans e Gretel começa realisticamente. Os pais são pobres e preocupam-se com a forma como serão capazes de criar os filhos. Discutem juntos, à noite, o seu caso e como resolvê-lo. Mesmo considerando-o só em aparência, o conto popular de fadas transmite uma verdade importante, ainda que desagradável: a pobreza e a privação não melhoram o carácter do homem, antes o tornam mais egoísta, menos sensível ao sofrimento dos outros, ficando assim mais predisposto a cometer más acções.
O conto de fadas exprime, por palavras e acções, aquilo que se passa no espírito das crianças. Em termos da angústia dominante da criança, Hans e Gretel crêem que os seus pais estão a planear abandoná-los. Uma criança pequena, quando acorda com fome na escuridão da noite, crê-se ameaçada de rejeição e abandono completos, que ela sente sob a forma do medo de morrer de fome. Projectando a sua angústia interior naqueles que temem que os venham a abandonar, Hans e Gretel convencem-se de que os pais planeiam matá-los à fome! De acordo com as fantasias angustiadas da criança, a história diz que até então os pais tinham podido dar-lhes de comer, mas que agora estavam a braços com tempos de escassez.(...)
Como sabem que precisam desesperadamente dos pais, tentam regressar a casa depois de terem sido abandonados. De facto, Hans consegue descobrir o caminho de volta na primeira vez que são abandonados na floresta. Antes de a criança ter a necessária coragem para se meter na viagem que a há-de levar a encontrar-se a si própria, de se tornar uma pessoa independente, conhecendo mundo, ela pode desenvolver uma iniciativa somente para tentar regressar à passividade, a fim de assegurar uma satisfação, eternamente dependente. Hans e Gretel diz que com o correr do tempo, isso não resulta.
O regresso bem sucedido dos filhos a casa não resolve coisa alguma. Os seus esforços para que a vida continue como dantes, como se nada tivesse acontecido, não resultam. As frustrações continuam, e a mãe torna-se cada vez mais astuta nos seus planos para se ver livre dos filhos.
Implicitamente, a história narra as debilitantes consequências de se tentar fazer frente aos problemas da vida, por meio de regresso e negação, que reduzem a nossa capacidade para resolvermos os problemas. Na primeira vez, Hans utilizou na floresta a sua inteligência, deixando cair pedrinhas que indicavam o caminho de casa. Na segunda vez já não utilizou tão bem a inteligência - ele, que vivia perto de uma floresta, devia saber que os pássaros haviam de comer as migalhas de pão.(...)
Frustrados na sua capacidade para encontrarem uma solução para o seu problema real, porque a confiança por eles depositada em alimento (migalhas de pão que marcavam o trilho) os deixa ficar mal, Hans e Gretel dão agora rédea solta à sua regressão oral. A casa [de chocolate] representa uma existência baseada nas mais primitivas satisfações. Levados pela sua ânsia descontrolada, as crianças não pensam senão em destruir o que lhes poderia dar guarida e segurança, mesmo levando em conta que o facto de os pássaros terem comido as migalhas devia ter servido de aviso acerca do comer.
Devorando o telhado e a janela da casa de [chocolate] as crianças mostram como estão prontas para desapossar, comendo, qualquer pessoa de sua casa, o que representa o medo que elas projectaram sobre os pais, como sendo a razão do seu abandono. (...)
A casa [de chocolate] é uma imagem que ninguém esquece: que quadro tão incrivelmente atraente e tentador é este, e que risco terrível corremos se nos deixarmos ceder à tentação. A criança reconhece, como Hans e Gretel, que ela gostaria de comer a casa [de chocolate], fosse qual fosse o perigo. A casa representa a gula oral e como é agradável sucumbir a ela. (...) Mas, segundo a história, tal cedência desenfreada à glutonice ameaça a destruição.(...) A bruxa, que é a personificação dos aspectos destruidores da oralidade, está tão decidida a comer as crianças como estas a demolirem a casa [de chocolate].(...)
Os maus desígnios da bruxa forçam finalmente as crianças a reconhecer os perigos da gula desenfreada e da dependência. Para sobreviver, elas têm de desenvolver a iniciativa e compreender que o seu único recurso jaz no planeamento e actuação inteligentes.(...) Um comportamento dirigido para a obtenção de determinada meta, baseado numa avaliação inteligente da situação em que se encontram, tem de tomar o lugar de fantasias para a satisfação de desejos: a substituição do osso pelo dedo, induzindo a bruxa a trepar para dentro do forno.(...)
Depois de se familiarizarem com Hans e Gretel, a maior parte das crianças compreende, pelo menos inconscientemente, que o que acontece na casa paterna e na casa da bruxa não são senão aspectos diferentes do que, na realidade, é uma experiência total. Inicialmente a bruxa é uma figura perfeitamente agradável de mãe, pois dizem-nos como «ela os levou a ambos pela mão e os conduziu até à sua casinha. Depois, pôs-lhes comida boa à sua frente, leite, filhós com açúcar, maçãs e nozes. Depois, dois pequenos leitos foram cobertos com lençóis limpos, e Hansel e Gretel deitaram-se neles, pensando que estavam no céu». Só na manhã seguinte acordam, bruscamente, destes sonhos de felicidade infantil. «A velhota tinha só fingido ser tão generosa; na realidade era uma maldosa bruxa..."
Isto é o que a criança sente quando é devastada por sentimentos ambivalentes, frustrações e angústias do estádio de desenvolvimento edipiano, exactamente como quando da sua decepção de desenvolvimento pela negação de sua mãe em satisfazer as suas precisões e desejos tão completamente como ela esperava. Muitíssimo transtornada por sua mãe a não servir cegamente, mas, pelo contrário, lhe fazer exigências e devotar-se cada vez mais aos seus próprios interesses - coisa de que a criança se não tinha permitido tomar consciência anteriormente -, ela imagina que a mãe, enquanto a amamentava e criava um mundo de felicidade oral, o fazia tão-somente para a enganar - tal como a bruxa do conto.
Assim, a casa paterna «junto da grande floresta» e a casa fatídica das profundezas da mesma floresta não são, a um nível inconsciente, senão dois aspectos da casa paterna: o consolador e o frustrativo.(...)
Hans e Gretel acaba com os heróis regressando à casa de onde partiram e ali encontram agora a felicidade. Isto está psicologicamente correcto, porque uma criança nova ainda, arrastada para aventuras pelos seus problemas orais e edipianos, não pode encontrar a felicidade fora de casa. Se tudo corre bem no seu desenvolvimento, ela tem de resolver estes problemas enquanto ainda estiver dependente de seus pais. Só mantendo boas relações com os pais pode a criança amadurecer com êxito para a adolescência. Tendo vencido as suas dificuldades edipianas, dominado as suas angústias orais, sublimado alguns dos seus anseios que não podem ser satisfeitos realisticamente e aprendido que o wishful thinking tem de ser substituído por acção inteligente, a criança está pronta para viver feliz com os pais. Isto está simbolizado pelos tesouros que Hans e Gretel trazem para casa para compartilharem com o pai. Em vez de esperar que tudo o que é bom venha dos pais, a criança mais crescida tem de ser capaz de contribuir para o bem-estar emocional de si própria e da família. (...)
As crianças já não se sentirão empurradas de um lado para o outro, abandonadas e perdidas na escuridão de uma floresta; nem procurarão mais a miraculosa casa [de chocolate]. Mas também não encontrarão nem recearão a bruxa, pois que provaram a si próprias que através do seu esforço conjunto a podem superar e saírem-se vitoriosas.
(...) Uma bruxa, tal como é criada pela fantasia da criança, persegui-la-á; mas uma bruxa que possa empurrar para dentro de um forno, queimando-se até morrer, é uma bruxa em que a criança pode acreditar porque foi ela que se desembaraçou da mesma bruxa. Enquanto as crianças acreditarem em bruxas - sempre acreditaram e sempre acreditarão, até à idade em que não sejam compelidas a dar aparência humana às suas apreensões despidas de forma -, elas precisam de ouvir histórias em que as crianças, pela sua invencibilidade, se desembaraçam destas figuras que as perseguem na sua imaginação. Conseguindo fazê-lo, ganham imensamente com a experiência tal como Hans e Gretel."

Bruno Bettelheim
Psicanálise dos Contos de Fadas
(Trad: C. H. da Silva)
Bertrand Editora
1975,1976/1999

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