
“Uma pequena encantadora e «inocente», engolida por um lobo, é uma imagem que fica indelevelmente gravada no nosso espírito. Em Hansel e Gretel, a bruxa só planeou devorar as crianças; n’A Menina do Capuchinho Vermelho, tanto a avó como a neta são de facto devoradas pelo lobo. Tal como a maior parte dos contos de fadas, A Menina do Capuchinho Vermelho existe em diversas versões. A mais popular é a dos irmãos Grimm, em que Capuchinho Vermelho e a avó renascem e o lobo recebe o seu justo castigo. (...)
A ameaça de ser devorada é o tema central d’A Menina do Capuchinho Vermelho, tal como o é de Hansel e Gretel. As mesmas constelações psicológicas, básicas, que se sucedem no desenvolvimento de todas as pessoas podem levar aos mais diversos destinos e personalidades, dependendo do que sejam as outras experiências da pessoa e como ela as interpreta. Do mesmo modo, um número limitado de temas básicos retrata nos contos de fada aspectos bastante diferentes da experiência humana; tudo depende de como tal motivo é elaborado e dentro de que contexto surgem os acontecimentos. Hansel e Gretel lida com as dificuldades e angústias da criança que é forçada a desistir do seu afeiçoamento, dependente, pela mãe e a libertar-se da sua fixação oral. O Capuchinho Vermelho levanta alguns problemas cruciais que a rapariga em idade escolar tem de resolver se os afeiçoamentos edipianos se vão deixando ficar no inconsciente, o que a pode levar a expor-se perigosamente à possibilidade de sedução.
Em ambos estes contos a casa na floresta e a casa paterna são a mesma casa, sentida muito diferentemente por causa de uma mudança na situação psicológica. Em sua própria casa, Capuchinho Vermelho, protegida pelos seus pais, é a criança pré-púbere, sem perturbações, bastante competente para lutar. Em casa da avó, que é doente, a pequena está indefesa e incapacitada pelos seus encontros com o lobo. (...)
A casa de Capuchinho Vermelho é casa farta e, uma vez que ela ultrapassou já a angústia oral, alegremente compartilha-a com a avó trazendo-lhe alimentos. Para Capuchinho Vermelho o mundo, para lá da casa paterna, não é um sertão ameaçador através do qual uma criança não possa encontrar o seu caminho. Fora da casa de Capuchinho Vermelho há uma estrada conhecida, da qual, avisa a mãe, ela não se deve desviar.
Enquanto Hansel e Gretel têm de ser empurrados para o mundo, Capuchinho Vermelho deixa a casa de livre vontade. Ela não receia o mundo exterior, reconhece a sua beleza – e aqui reside um perigo. Se este mundo, que está para além da casa e das suas obrigações, for demasiado atraente, ele poderá conduzir-nos a um comportamento de acordo com o princípio do prazer – ao qual, presumimos, Capuchinho Vermelho renunciou devido aos ensinamentos de seus pais a favor do princípio da realidade -, e então podem dar-se encontros destrutivos.
O dilema existente entre o princípio da realidade e o princípio do prazer está explícito quando o lobo diz a Capuchinho Vermelho: “Olha como são bonitas as flores que estão à tua roda. Porque não dás uma vista de olhos? Creio que nem sequer ouves como os passarinhos estão a cantar tão bem. Andas com um só propósito, e uma tal concentração como se fosses para a escola, enquanto tudo o resto aqui na floresta é belo.” Este é o mesmo conflito da opção pelo que gostamos de fazer ou pelo que devemos fazer, como preveniu sua mãe, quando lhe disse: “Caminha com cuidado, não saias da estrada... e quando chegares à casa da avó não te esqueças de lhe dar os bons-dias, e não comeces a vasculhar por toda a parte.” A mãe está, pois, ao facto da tendência que Capuchinho Vermelho tem de sair do caminho habitualmente usado e de meter o nariz em todos os cantos para descobrir os segredos dos adultos. (...) Capuchinho Vermelho quer descobrir coisas, como se depreende da advertência feita pela mãe para não andar a espreitar. Ela observa que alguma coisa há de errado com a avó, “que parece muito estranha”, mas fica confusa por o lobo se ter disfarçado com as vestes da velha. Capuchinho Vermelho tenta compreender quando interroga a avó acerca das suas grandes orelhas, dos grandes olhos, das grandes mãos, da boca horrenda. Eis uma enumeração dos quatro sentidos: ouvir, ver, tocar e saborear; a criança púbere utiliza-os para compreender o mundo.
O Capuchinho Vermelho, em forma simbólica, projecta a pequena nos perigos dos seus conflitos edipianos durante a puberdade, e depois salva-a deles, de forma que ela possa amadurecer livre de conflitos. As figuras maternais da mãe e da bruxa, que eram de importância capital em Hansel e Gretel, são reduzidas à insignificância no Capuchinho Vermelho, onde nem a mãe nem a avó podem fazer coisa alguma – nem ameaçar, nem proteger. O macho, em contraste, é capital, repartido por duas formas antagónicas: o sedutor perigoso, que se vencer, se tornará destruidor da boa avó e da pequena, e o caçador, pai figurado, responsável, forte e libertador.
É como se Capuchinho Vermelho estivesse a tentar compreender a natureza contraditória do macho, sentindo todos os aspectos da sua personalidade: as tendências egoístas, associais, violentas e potencialmente destrutivas do id (o lobo); as propensões generosas, sociais, solícitas e protectoras do ego (o caçador).
Toda a gente gosta de Capuchinho Vermelho, porque, embora virtuosa, tem tentações; e porque o seu destino nos diz que confiar nas boas intenções de todo o mundo, que parece tão bonito, significa de facto que estamos à mercê de ciladas. Se não houvesse dentro de nós alguma coisa que nos fizesse gostar do lobo mau, ele não teria qualquer poder sobre nós. Portanto, é importante entender a sua natureza, mas mais importante ainda é aprender o que o torna simpático para nós.”
(texto: Bruno Bettelheim, Psicanálise dos Contos de Fadas; Bertrand Editora. 1975/76/1999. Trad. C.H. da Silva)
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