
Vigésimo Sexto Sonho
- Tirado daqui e colocado debaixo de vidro, disse a rapariga, voltada para o quarto ao lado. Em seguida, entrou e fechou a porta, puxando-a docemente para si.
- Clara, chamei eu. – Encontrava-me dominado pelo sentimento de que esta cena já acontecera, provavelmente, uma primeira vez; nessa altura, é que deveria ter colocado a palavra: Clara. Mas agora, era de tal modo deslocado, que tanto fazia dizer: cobalto, como dizer sufoco, ou corassin; tudo, menos: Clara. Soava a falso, magoava, era, de facto, impossível dizer, neste momento: Clara.
Apanhei, de imediato, o que se passara e compreendi perfeitamente o desprezo com que a rapariga se afastou de mim, não me devia surpreender. Ouvi-a levar para algures uma gaveta e, um pouco mais tarde, já estava de pé à janela com um bordado, erguia-o para o expor à luz, esticava-o e examinava-o, a cabeça ligeiramente inclinada para o lado. E foi nesta postura que disse desdenhosamente:
- Não compreendo porque não a quis beijar.
Estava gratuitamente a implicar comigo e contentei-me em esboçar um gesto irónico. A rapariga sentou-se no vão espaçoso da janela, pousou o bordado sobre os joelhos, e alisou-o, lentamente, à esquerda e à direita, usando as duas mãos. E influenciado por esse movimento, ou talvez porque levasse em consideração a sua cabeleira loura reclinada para diante, ou não sei porque razão, admito que o que fiz seja dificilmente compreensível. Um gigantesco absurdo vem ao meu encontro, e que não tem nada a ver com esta pequena recordação. Estou a ver os olhos arregalados duma tuberculosa, e esses olhos eram implorantes. Mas, Deus meu!, que imploravam eles?
- Já não deve restar grande coisa dela, neste momento, disse a rapariga.
Rainer Maria Rilke
A Voz
(Trad. A.M. Gonçalves)
Edições Rolim
(imagem: Salvador Dali, Soft Watch at the Moment of First Explosion)
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