
PARIS/TEXAS
(Travis) - Posso dizer-lhe uma coisa?
(Jane) - Tudo o que quiseres.
- Vai levar tempo.
- Tenho o tempo todo.
- Eu conhecia-os.
- Quem eram?
- Duas pessoas... Amavam-se uma à outra... A rapariga era muito nova, 17 ou 18 anos. E o homem era bastante mais velho. Era rude e selvagem. E ela era muito bela.
- Sim.
- Ambos faziam de tudo uma aventura. E ela gostava disso. Uma simples ida à mercearia já era uma aventura. Riam de coisas estúpidas. Ele gostava de a fazer rir. Pouco se importavam com o resto, pois só queriam uma coisa... estarem um com o outro. Estavam sempre juntos.
- Deviam ser muito felizes...
- E eram. Verdadeiramente felizes. Ele amava mais... do que julgava ser possível. Não suportava estar longe dela quando trabalhava. Então largava o trabalho. Só para estar com ela em casa... Quando faltava o dinheiro arranjava outro trabalho. E deixava-o também. Mas não tardou que ela se inquietasse.
- Porquê?
- Pelo dinheiro, suponho. Por não ter bastante.
- Uhm...
- Por não saber quando chegava o cheque
- Sei o que isso é.
- Ele então começou a atormentar-se.
- Como assim?
- Por ter de trabalhar para a sustentar, mas não suportou estar longe dela.
- Ah!
- Quanto mais longe dela estava mais enlouquecia. Até que enlouqueceu mesmo. Pôs-se a imaginar coisas.
- Que coisas?
- Que ela encontrava outros homens na sua ausência... Ao voltar do trabalho acusava-a de ter estado com outro. Berrava, partia coisas na caravana.
- Na caravana?
- Sim, eles viviam numa caravana.
- O senhor não veio ver-me no outro dia? Sem ser indiscreta...
- Não.
- Oh! Julguei reconhecer a sua voz.
- Não! Não era eu.
- Continue.
- Ele então começou a beber muito. Voltava tarde, para a pôr à prova.
- Pô-la à prova como?
- Para ver se ela tinha ciúmes.
- Ah!
- Queria que ela tivesse ciúmes, mas ela não os tinha. Só se inquietava por ele, o que o enfurecia ainda mais.
- Porquê?
- Por pensar que ela não queria saber dele. Os ciúmes seriam sinal de que o amava. Então uma noite... ela disse-lhe que estava grávida. De três ou quatro meses, e ele não sabia. Então tudo mudou. Ele deixou de beber e arranjou um trabalho fixo. Convenceu-se de que ela o amava, pois trazia um filho dele. Ia consagrar-se inteiramente a dar-lhe um lar. Mas aconteceu uma coisa estranha.
- O quê?
- De começo ele nem reparou que ela tinha mudado. Desde que nascera o menino, tudo a irritava. Tudo a enfurecia. Mesmo o menino lhe parecia uma injustiça. Ele esforçava-se por lhe agradar. Dava-lhe presentes. Levava-a a jantar fora, todas as semanas. Mas nada a satisfazia. Durante dois anos, ele fez tudo para voltarem a ser como eram no começo. Mas acabou por compreender que era impossível. Então voltou a beber, mas as coisas azedaram. Quando voltava tarde ela não estava inquieta, nem ciumenta. Estava enraivecida. Acusava-o de a ter sequestrado fazendo-lhe um filho. Dizia-lhe que sonhava fugir. Não sonhava com outra coisa: fugir. Via-se a correr de noite... toda nua, através dos campos, sempre a correr. E sempre que ela estava prestes a invadir-se, ele aparecia a detê-la. Aparecia e detinha-a. Quando ela lhe contava esses sonhos, ele acreditava. Sabia que se a não detivesse ela fugiria. Prendeu-lhe uma campainha ao tornozelo, para a ouvir, se ela tentasse levantar-se de noite. Ela aprendeu a abafar a campainha com uma peúga, e a esgueirar-se da cama. Mas a peúga caiu quando ela já ía na estrada. Ele agarrou-a e amarrou-a ao fogão com o cinto. Deixou-a ali e tornou-se a deitar. Ouviu-a gritar, sem se mover. Depois ouviu o filho aos gritos... e admirou-se de não querer saber de nada. Tudo o que queria era dormir. E, pela primeira vez desejou estar longe dali. Perdido num vasto país onde ninguém o conhecesse. Num lugar sem linguagem e sem ruas. Sonhou com esse lugar sem lhe saber o nome. E quando despertou.... estava a arder. Chamas azuis queimavam os lençóis da cama. Correu para os dois únicos entes que amava... Mas tinham partido. Tinha os braços em brasa. Saiu para fora da casa e rolou-se no chão molhado... E depois correu. Nunca se voltou para ver o fogo. Só correu. Correu até ao nascer do sol. Até não poder mais. E quando o sol se pôs tornou a correr. Correu assim durante cinco dias. Até que sem deixar sinais... desapareceu.
- Travis...
- Se apagares a luz aí dentro, poderás ver-me?
- Não sei... nunca experimentei.
- Podes ver-me?
- Sim.
- Reconheces-me?
- Oh! Travis...
- Trouxe o Hunter comigo. Não queres vê-lo?
- Sim. Queria tanto vê-lo, que não ousava imaginá-lo. A Anne mandava-me fotografias dele. Pedi-lhe que deixasse de as mandar. Não suportava a dor de o ver crescer longe de mim.
- Porque não ficaste com ele?
- Não podia. Não tinha aquilo de que ele necessitava. Não queria utilizá-lo para encher o vazio da minha vida.
- Ele agora precisa de ti Jane. E quer ver-te.
- Ele quer?
- Está à tua espera.
- Onde?
- Na cidade. Num hotel. Le Meridien... quarto 1520.
- Tu não te vais embora, pois não?
- Eu não posso ver-te Jane.
- Não vás ainda... Não vás ainda... Fazia-te grandes discursos depois de partires. falava-te a toda a hora, mesmo só. Enquanto caminhava, meses a fio. Agora... não sei o que dizer. Era mais fácil quando te imaginava que me respondias, tínhamos longas conversas os dois. Era como se lá estivesses. Via-te, sentia o teu odor. Ouvia a tua voz. Ás vezes a tua voz despertava-me, a meio da noite, como se estivesses ali. Depois... tudo se dissipou lentamente. Já não podia imaginar-te. Tentei falar-te, mas em vão. Já não te ouvia. Então... renunciei. Tudo parou. Tu... desapareceste, simplesmente. Agora, trabalho aqui. Oiço a tua voz a toda a hora. Cada homem tem a tua voz.
- Vou dizer ao Hunter... que vais chegar...
- Travis...
- Sim.
- Lá estarei.
- Óptimo.
- Hotel Meridien...
- Sim. Quarto 1520.
SAM SHEPARD
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