domingo





O homem embrulho

O homem embrulho permanecia longas horas a examinar a qualidade do papel que usava semestralmente. Era habitual não fazer compras na mesma loja pelo menos por um período menor que três Invernos. Quando chegava a altura de um novo embrulho, seguia determinados rituais que levara anos a aperfeiçoar. O modo como entrava na loja era o primeiro ponto desse complexo ritual. Não só constituia o primeiro passo, como era de suprema importância para que todos os restante passos pudessem conduzir àquilo que procurava. Não podia entrar de modo casual ou de uma maneira apressada, de rompante ou como se buscasse algo específico. O homem embrulho entrava sempre na loja escolhida de um modo sorrateiro, absolutamente silencioso, como se tivesse entrado na loja vizinha. Na verdade, o homem embrulho era tão exímio na sua entrada invisível que os empregados só se apercebiam da sua presença quando colocava aquilo que escolhia no balcão ao lado do cartão com que financiava praticamente tudo na sua vida. Uma vez na loja havia que proceder à escolha daquilo que o levara lá. O papel dos próximos seis meses. Nesta escolha havia apenas duas condições: nunca um tipo de papel que já tivesse usado e nunca um papel reciclado, o que, bem vistas as coisas, ia dar ao mesmo. Percorrendo as prateleiras dos vários tipos de papel, o homem embrulho passava algum tempo em cálida nostalgia enquanto contemplava os vários papéis que já usara e recordava os períodos de vida correspondentes. O papel cetim transportava-o para a cidade onde perdera a virgindade e um chapéu. Lembrava-se do aroma do mar que banhava a costa dessa cidade e dos passeios de barco ao fim-de-semana. O papel pardo e as belas semanas com Lola a masoquista espanhola que se alimentava exclusivamente de marisco, embora fosse alérgica ao tal manjar. O papel vinil que atraíra melros, corvos e um cisne negro. Este papel tinha sido o último a ser usado. O homem embrulho afastou o papel vinil com algum desconforto pois ainda tinha presente o risco que correra com este tipo de papel. Serve-me de lição, pensa o homem embrulho, não posso usar algo tão frágil, por pouco não era desembrulhado.
E arrepiado com tal ideia, dirigiu-se lestamente para a outra sala, onde amostras de papel se encontravam em exposição juntamente com rolos de cartolina, cartão e tecido.

1 comentário:

éme. disse...

Histórias de imaginação recortada por pedaços de impressões de papel, hein?!
Pela minha saudinha que gostava de conhecer estas personagens mas vê-las sem que me vissem, saber delas, sem que de mim soubessem!
:)